quarta-feira, 25 de julho de 2012

A raiva e a patologização do normal

A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) publicou hoje, em sua página no Facebook, esta pequena nota, transcrita na íntegra abaixo:

"A personagem Carminha, vivenciada pela atriz Adriana Esteves na novela Avenida Brasil, da TV Globo, tem mostrado constantes situações de humor, enquanto Nina (Débora Falabella) tenta continuar com o plano de vingança. Embora a situação seja de ficção, muitas pessoas encontram a raiva como um desejo supremo de satisfazer uma vontade interior. É bom lembrar que em sinais de descontrole visitar um especialista pode evitar que um pequeno problema emocional se torne uma tragédia" (confira aqui): 

Então quer dizer que os psiquiatras agora tratam raiva também? Eu não sabia que raiva tinha virado transtorno. Eu pensava que era uma coisa da vida. Ruim, certamente, mas parte da vida, assim como a tristeza, a inveja e o rancor. Devo estar enganado. Ironias à parte, gostaria de destacar que esta nota é muito representativa daquilo que o psiquiatra Octavio Serpa Jr. (fonte) chama de processo de patologização no normal, em curso no mundo contemporâneo. Este processo é facilmente constatável ao se observar a evolução dos principais “manuais de doenças”, utilizados internacionalmente na medicina e na área “psi”: o CID (Classificação Internacional de Doenças) e o DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais), o primeiro já na décima versão (CID-10), caminhando para a décima primeira, enquanto o segundo na quarta (DSM-IV), caminhando para a quinta. Ao analisar o movimento de uma versão para a seguinte e da primeira versão para a última, como fez Serpa Jr, podemos verificar um aumento considerável no número de doenças e transtornos catalogados. As próximas versões destes manuais provavelmente ampliarão ainda mais o número e a amplitude daquilo que “cientificamente” é considerado patológico. 

Um bom exemplo deste processo de patologização do normal pode ser encontrado no livro A tristeza Perdida (Ed. Summus, 2010), onde os autores Allan Horwitz e Jerome Wakerfield, demonstram como a psiquiatria “científica” moderna patologizou a tristeza normal através do desenvolvimento de critérios diagnósticos que se baseiam exclusivamente nos sintomas apresentados pelo paciente, ignorando o contexto em que eles apareceram e se mantém. Argumentam que, no principal manual de transtornos mentais, o DSM-IV, a única circunstancia que inviabiliza o diagnóstico de transtorno depressivo é o luto. Todas as outras circunstancias negativas, a que qualquer pessoa está exposta – como o fim de um relacionamento amoroso, a perda de um emprego, a descoberta de uma doença grave, etc. – são ignoradas na realização do diagnóstico psiquiátrico. Desta forma “toda reação triste envolvendo um número suficiente de sintomas especificados durante pelo menos duas semanas será erroneamente classificada como transtorno, ao lado de alterações psiquiátricas genuínas”. Assim, a tristeza normal, “natural” e necessária em certos contextos, vem sendo confundida com depressão. Porém, afirmam os autores, que a “separação entre tristeza normal e transtorno depressivo é sensata e legítima; é de fato crucial. É coerente não só com a distinção entre normalidade e patologia usada na medicina e psiquiatria tradicional, mas também com o bom-senso, e tem relevância clínica e cientifica. No entanto, a psiquiatria contemporânea tem ignorado em grande parte tal distinção”. Daí, argumentam, os altos índices de depressão “identificados” em levantamentos epidemiológicos. Segundo eles, isto reflete muito menos a realidade endêmica do problema e muito mais a ampliação e a banalização do diagnóstico moderno de depressão. 

Neste sentido, vários autores apontam que pouco se tem refletido, especialmente na formação na área da saúde, sobre a diferença entre normal e patológico ou entre saúde e doença. Identificamos, como Serpa Jr, a falta “de uma sólida discussão conceitual e prática acerca da fronteira entre o normal e o patológico”. Observa-se que, para muitos profissionais, doenças físicas e – o mais problemático – transtornos mentais, são considerados entidades objetivas, dotadas de vida própria e dispostas a quem quiser enxergar. Parecem desconsiderar as determinações sociais, políticas e econômicas – vide o forte lobby da gigante indústria farmacêutica sobre os médicos e outros profissionais da área da saúde e sobre a sociedade de uma forma geral – que contribuem para as atuais definições de normal e patológico. E ainda, afirma Serpa Jr., “na medida em que é flutuante esta demarcação, o debate acerca do normal e do patológico se atualiza constantemente, exigindo daqueles que militam na Clínica um esforço permanente de reflexão”. Porque se não refletirmos profunda e constantemente, corremos o risco de confundir emoções da vida, como a raiva e a tristeza, com transtornos mentais passíveis de serem tratados com medicamentos. 

Geração Tarja Preta - O debate


A "guerra", a que me referi no post anterior, está mais intensa do que nunca. Na última sexta-feira, dia 20 de Julho, o programa Participação Popular, da TV Câmara, promoveu (ou melhor, tentou promover) um debate sobre a "Geração Tarja Preta". Como debatedores foram convidados o presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Antônio Geraldo da Silva, e a pediatra Maria Aparecida Moysés, representante do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade. A idéia foi ótima: juntar representantes de duas visões antagônicas sobre a questão da medicalização para um debate. Só que, na prática, a discussão ficou muito confusa. Como a concepção do programa, expressa em seu título, é integrar o debate entre os convidados com perguntas e opiniões de participantes leigos, às vezes, fica difícil conciliar tantas participações. O apresentador até tentou, mas não conseguiu integrar tantas vozes e opiniões num todo coerente. O debate ficou, então sem foco e os debatedores mal conseguiram expor suas idéias sem serem constantemente interrompidos. Mas o supra-sumo de toda a discussão está presente. Confira o video aqui e dê sua opinião.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Sobre o TDAH e outras invenções



Neste momento, uma guerra está em curso no Brasil. De um lado, está a Psiquiatria, representada pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP); do outro, a Psicologia representada pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP). No centro da guerra o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Em partes, trata-se de uma briga corporativa, uma disputa por mercado: a ABP defende o tratamento medicamentoso, o CFP, o tratamento psicológico. Mas o que está em jogo não é só isso. Mais profundamente, o conflito se deve à duas visões antagônicas do processo saúde-doença: uma biológica, outra psico-sociológica.

Na última sexta-feira, dia 13 de Julho, a ABP, em parceria com a Associação Brasileira de Déficit de Atenção (ABDA) e com o apoio de mais 27 entidades brasileiras, lançou a "Carta de esclarecimento à sociedade sobre o TDAH, seu diagnóstico e seu tratamento" (leia aqui) com o objetivo explícito de eliminar qualquer questionamento com relação à "existência" do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Implicitamente, esta carta é uma mensagem direta ao CFP, que acabou de lançar a campanha "Não à Medicalização da Vida" e ao Fórum sobre a Medicalização da Educação e da Sociedade (veja aqui e aqui), que em diversos eventos, campanhas, sites e textos, tem criticado a atuação da Psiquiatria e colocado dúvidas sobre a existência deste "suposto transtorno". Em um post do ano passado eu discuti esta questão, mas acho que não deixei muito clara minha visão. 


Afinal, o TDAH existe? Sim, claro, sem dúvida. Mas existe porque foi criado. É uma invenção, real como todas as invenções. Concordo com o psiquiatra infantil - e meu professor na UERJ - Rossano Cabral Lima que, em seu excelente livro "Somos todos desatentos?", afirma: "Não duvidamos da existência do TDA/H, desde que se entenda que o transtorno existe como uma construção e não como um objeto autônomo e auto-evidente a partir do preenchimento de critérios diagnósticos ou da observação do funcionamento cerebral". Sob esta perspectiva, o inconsciente freudiano, da mesma forma que o TDAH, é uma invenção, que se tornou real a partir do momento em que foi inventado. 

Numa interessante reportagem da revista Trip (leia aqui), Marilena Proença, professora da USP, conselheira do CFP e militante anti-medicalização, afirma que "TDAH não existe. O que existe são crianças diferentes, com formas de aprender diferentes. Algumas são mais focadas, outras mais dispersas. Não existe um padrão de aprendizado”. A carta da ABP começa criticando exatamente os profissionais e pesquisadores que fazem afirmações como a de Marilena. Segundo a ABP, tais pessoas não são, de fato, cientistas, apenas "transmitem opiniões pessoais como se fossem informações científicas". E mais: não são apenas equivocados, mas talvez mal-intencionados e, certamente, perigosos, afinal, "tais opiniões equivocadas são nocivas para pacientes, familiares e para a população como um todo". Tudo isto indica, pra início de conversa, que não é possível - nem desejável - discordar dos cientistas, daqueles que detém o verdadeiro saber! Deve-se aceitar o que dizem, afinal a Ciência sempre tem razão, não é mesmo? Não devemos questioná-los, apenas reverenciá-los. Mas, como verdadeiros cientistas, que "provas" apresentam da existência do TDAH? Nesta carta, pelo menos, nenhuma. Utilizam-se apenas de argumentos de autoridade - do tipo "a OMS afirma que o TDAH existe, logo ele existe". Mas a OMS, em seu manual de doenças, o CID, já considerou a homossexualidade uma doença, deixando de considerar apenas em 1993. E mais: muitas coisas que não eram consideradas doenças hoje o são e outras que eram não são mais. Tanto o CID quanto o DSM mudaram - e mudam - enormemente entre uma edição e outra. Ou seja, o que a OMS diz ou deixa de dizer, neste caso, não prova nada, apenas dá autoridade e peso político ao argumento da ABP.


A ABP argumenta também que milhares de "publicações em bancos de dados" descrevem "claramente as graves consequências nas esferas acadêmica, familiar, social e profissional" do TDAH. Repito: descrevem as consequências, não "provam" a existência, não "provam" ser o TDAH um transtorno ou doença. Mas, a questão central, na minha opinião, é que eles não tem como provar. Afinal, como se pode provar cientificamente que o TDAH ou qualquer outro "suposto transtorno" é realmente um transtorno ou uma doença? O que é normal ou patológico nunca é algo evidente, dado, certo, mas é sempre produto de uma definição. E esta definição, por sua vez, é fruto de uma negociação permeada por interesses diversos (científicos, financeiros, humanitários, etc). No caso dos transtornos mentais, a linha que separa o normal do patológico é definida oficialmente por um restrito grupo de psiquiatras norte-americanos, responsáveis pela atualização do DSM. E como este grupo define o que entra e o que fica de fora do manual? Através de acordos e negociações, entre o próprio grupo e entre este e a sociedade. É claro que dados de pesquisas são utilizados nos grupos de trabalho, mas, certamente, há mais política e menos ciência do que normalmente se acredita. A Psiquiatria, assim como a Psicologia, é bem menos objetiva do que tenta parecer. Feliz ou infelizmente, não sei. 

Alguns podem argumentar: mas e as imagens cerebrais, não provam a existência do TDAH? Não. Mas como assim? Em primeiro lugar, grande parte, senão todas, as pesquisas neurocientíficas sobre TDAH partem de um diagnóstico realizado anteriormente. Os pesquisadores, então, comparam a atividade cerebral dos "portadores" com os não-portadores (os "normais"), o que, segundo alguns pesquisadores, evidencia a existência do transtorno. Primeira coisa: tal diferença, evidenciada pelas imagens é causa ou consequência do transtorno? Difícil saber. Segunda coisa: caso exista uma diferença, na média, entre os padrões de atividade cerebral, como definir se determinado padrão é patológico? Já disse diversas vezes neste blog, mas volto a afirmar: as neuroimagens não falam por si, elas precisam ser interpretadas. E a interpretação de que certo padrão é patológico ou não depende de definições anteriores. 


A carta da ABP critica ainda aqueles que afirmam ser a Ritalina perigosa e ter como principal objetivo tornar as crianças obedientes. Esta é uma das principais críticas à medicamentalização da vida: de que ela busca, pra dizer nos termos foucaultianos, normalizar as crianças, ou seja, torná-las "normais" - comuns, regulares, padronizadas. Esta visão negativa da Ritalina, conhecida também como a "droga da obediência", é amplamente disseminada pela sociedade - assim como a própria Ritalina -, tendo inspirado alguns clássicos epísódios de programas de humor como o South Park (baixe o episódio "Timmy 2000" legendado aqui) e os Simpsons (veja aqui legendado). Minha opinião, que já expressei em outras ocasiões neste blog, permanece: acredito que a medicação pode ser útil para certas pessoas em certas situações, mas percebo um exagero, um excesso de prescrições associado a um alargamento dos critérios diagnósticos. Além disso, tanto a perspectiva psiquiátrica quanto a psicológica, tendem a individualizar questões ou problemas que envolvem o contexto em que a pessoa está inserida. Tratar a pessoa, muitas vezes, significa, ignorar seu entorno. E a medicação, em muitos casos, tem sido o único recurso utilizado no "tratamento". Infelizmente.

No episódio do South Park, duas mães, cujos filhos foram diagnosticados com TDAH, conversam. A primeira afirma: "Tudo faz sentido agora. Eu nunca conseguia fazer o Stanley prestar atenção no avô dele quando ele contava histórias dos anos 30". A segunda, concordando, afirma, "Kyle fica tão agitado que as vezes ele corre e grita como um garoto de oito anos", ao que o próprio Kyle afirma "mas eu tenho 8 anos". Esta cena, explicita a principal crítica dos opositores do diagnóstico de TDAH, de que ele transforma em doença ou transtorno características normais da infância - ou, pelo menos, de algumas crianças. Outra crítica, evidente na fala da primeira mãe, é de que o mundo mudou e as crianças também. Assim, como esperar que uma criança, e mesmo um adulto, vivendo no hiperativo século XXI se comporte como se vivesse no "tranquilo" mundo do início do século XX?


Sobre o método diagnóstico, a carta da ABP afirma ser eminentemente clínico, mas que isso não torna "frágil" o processo. A ausência de exames físicos, afirmam eles, não fragiliza o diagnóstico de TDAH, da mesma forma que não fragiliza o diagnóstico de outros transtornos mentais, como o autismo e a esquizofrenia. O que eles não se dão conta é de que mesmo estes diagnósticos não são dados e certos, mas permanecem rodeados de inúmeras dúvidas e incertezas. Uma questão interessante é que tanto a ABP quanto a ABDA afirmam a todo momento que não há, de fato, nenhuma controvérsia sobre o TDAH (veja, por exemplo, aqui). Para eles é um fato científico inquestionável. Trata-se de um transtorno neurobiológico que traz sérias consequências para seus portadores e, portanto, deve ser tratado. O curioso é que, mesmo alegando haver consenso e não haver controvérsias, a ABP e outras associações sempre vêm à público defender a existência e a pertinência do diagnóstico de TDAH. Ou seja, se houvesse realmente um consenso, não precisariam fazer isso. Na própria carta, eles tentam estabelecer um paralelo do TDAH com a diabetes, só que uma importante diferença entre estes diagnósticos, dentre tantas, é que nenhuma associação precisa vir à público de tempos em tempos defender a existência do diabetes. Talvez no passado isso tenha sido necessário, mas não hoje. No caso do TDAH, não há qualquer consenso, nem dentro nem fora da psiquiatria.




A globalização da psiquê americana


Reproduzo abaixo uma interessantíssima entrevista realizada pelo jornal Folha de S. Paulo com o jornalista Ethan Watters sobre seu livro "Loucos como nós: A globalização da psiquê americana", infelizmente ainda não lançado no Brasil.

LOUCURA GLOBALIZADA

Janaína Lage

A influência americana sobre o comportamento do globo não está restrita às cadeias de fast food, aos filmes ou às fábricas de tênis. O país está exportando também sua maneira de ver e tratar as doenças mentais, conforme a tese do jornalista e escritor Ethan Watters. No livro "Crazy Like Us: The Globalization of the American Psyche" (Loucos Como Nós: A Globalização da Psique Americana), Watters dá exemplos do avanço de doenças como anorexia, esquizofrenia, depressão e estresse pós-traumático em locais como China, Japão, Sri Lanka e Zanzibar. O autor mostra como surgiram alguns dos primeiros episódios de anorexia na China: após a divulgação de um caso, especialistas ocidentais apresentaram em entrevistas os sintomas clássicos da doença nos EUA e rapidamente o distúrbio, nos moldes americanos, se popularizou no país. Em entrevista à Folha, Watters conta como as fabricantes de remédios se beneficiam desse processo. No Japão, uma só empresa vendeu mais de US$ 1 bilhão em antidepressivos em 2008. Antes, a doença era considerada rara no país.

FOLHA – O que o levou a se interessar por doenças mentais? 

ETHAN WATTERS – Na década de 1990, escrevi um livro com Richard Ofshe sobre a controvérsia em torno da recuperação da memória. A psicoterapia americana havia levado mulheres a relembrar abuso na infância. As memórias não eram precisas. Em alguns casos, os fatos nunca ocorreram. O livro falava sobre a manipulação de memórias. A expressão da doença mental é moldada pelo ambiente, pelo indivíduo e também pelo responsável pelo tratamento. Quais sintomas são legítimos em cada época? Comecei a pensar sobre a globalização e sobre como os EUA são responsáveis por categorizar essas doenças e preconizar seu tratamento. 

FOLHA – Quem se beneficia? 

WATTERS - As fabricantes de remédios são as que mais se beneficiam, ao fazer com que o mundo pense de uma mesma forma sobre doenças mentais. Elas apresentam o cadeado e mostram a chave. Claro, muitas pessoas avaliam que as doenças mentais devem receber tratamento semelhante em qualquer lugar. Há um elemento bioquímico que persiste, apesar das diferenças culturais. O que discuto é que, quando você desconsidera os aspectos culturais, deixa de apreciar particularidades, como a capacidade de se adaptar a mudanças. 

FOLHA – O sr. dá o exemplo da anorexia em Hong Kong, que originalmente não estava ligada ao medo de engordar. Se os sintomas não são iguais, qual é a validade do diagnóstico para o doente? 

WATTERS – Se houvesse um medicamento com um único modo de ver a anorexia, faria sentido ter um diagnóstico único. Não existe um padrão único para a doença. A esperança é entender os indivíduos que apresentam a doença, o ambiente e sua cultura. A solução única para os casos é problemática. 

FOLHA – Quais são as consequências dessa homogeneidade? 

WATTERS – Vamos perder as formas de tratamento de doenças mentais existentes em diferentes culturas. Não estamos só exportando nossas ideias para o resto do mundo e as impondo. O resto do mundo tem fome de ideias do Ocidente. Se nós exportamos nossos modelos de tratamento e medicamentos, podemos perder informações sobre o ser humano e sua complexidade que seriam benéficas para todos nós. 

FOLHA – Mas as demais culturas assimilam passivamente o que os EUA pregam em termos de tratamento? 

WATTERS – Não. Há sinais de retrocesso na farta disseminação de antidepressivos no Japão. Já existem psiquiatras questionando o uso indiscriminado. Perguntei a pesquisadores sobre o efeito dessa política de exportação de tratamento e a resposta é que isso é inevitável. Minha esperança é que isso possa ser conciliado com um entendimento local dos casos. 

FOLHA – No livro, o sr. relata como a descrição de casos públicos de doenças contribuem para a sua popularização, a partir da identificação do público com os sintomas. O sr. cita a entrevista de Lady Di sobre bulimia e o crescimento posterior no número de casos. Isso não é inevitável? 

WATTERS – É complicado, trata-se de um processo inconsciente. Os jornalistas são uma parte crítica dessa equação. Onde começa a responsabilidade de narrar histórias sobre novas doenças? Não digo que se deve reter informação, mas não é uma resposta simples. Se considerarmos tópicos tabus, como o suicídio, há regras. Deveria haver um cuidado similar com as doenças mentais. É preciso que editores e repórteres discutam, quando vão descrever um novo tipo de comportamento autodestrutivo. Existe incidência significativa? É uma discussão válida. 

FOLHA – O sr. mostra como os psiquiatras que chegaram ao Sri Lanka logo após o tsunami não levaram em conta as necessidades locais, mas achavam que estavam fazendo o melhor ao oferecer tratamento para estresse pós-traumático. 

WATTERS – A mensagem que eles apresentaram é que detinham o aparato e a experiência para entender o que aconteceu, e que a população precisava do conhecimento ocidental. É uma mensagem destrutiva. Existem crenças próprias e uma capacidade de superação na cultura local que ajudam a lidar com essa situação. É uma ideia particularmente americana, a de que somos capazes de entender o significado do estresse pós-traumático. 

FOLHA – O sr. encontrou algum exemplo recente na América do Sul? 

WATTERS – Encontrei o aumento do consumo de antidepressivos na Argentina, em um cenário de hiperinflação. Os anúncios sugeriam que era um tempo de ansiedade e as pílulas deveriam ser usadas para suportar o ambiente econômico. A América do Sul já sofre uma grande influência sobre doenças mentais, não só dos EUA como da Europa. 

FOLHA – Após a explosão da crise, esse aumento de vendas está mais visível em outros países? 

WATTERS – Quando estava terminando o livro, houve a explosão da crise, e quase instantaneamente vi empresas tentando vender remédios contra suicídio e depressão. A instabilidade econômica pode levar a um aumento da ansiedade, mas a questão do livro é que não há um jeito único para o ser humano expressar psicopatologias. A crise pode aumentar a incidência, mas a mente humana e a consciência agem de maneiras distintas.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

"Meu primeiro Viagra" e as lifestile drugs


Assisti esta semana no GNT um excelente documentário holandês chamado "Meu primeiro Viagra" (em inglês Erectionman, 2009), do diretor, Michael Schaap. Este filme é uma espécie de versão masculina do ótimo "Indústria do orgasmo" (Orgasm.Inc, 2009), documentário igualmente crítico à indústria farmacêutica - e disponível legendado aqui. Não encontrei nenhum link para assistí-lo ou baixá-lo na íntegra. Se alguém encontrar, pelo menos legendado em inglês, me dê um toque. 

Segundo o site do GNT, "o diretor do documentário é um holandês de 40 anos que decide experimentar pílulas como o Viagra. Ele faz uma investigação sobre o surgimento da disfunção erétil como doença e o lançamento do Viagra em 1998". Mais correto seria afirmar que o diretor investiga não o surgimento, mas a construção do diagnóstico de disfunção erétil, que gradualmente substituiu o pesado rótulo de "impotência". O filme expõe as táticas dos laboratórios farmacêuticos (em especial da Pfizer, fabricante do Viagra) para ampliar o mercado consumidor da droga. Inicialmente - e formalmente - recomendado para pessoas mais velhas e com sérias dificuldade de ereção, o Viagra passou, aos poucos, a ser utilizado por qualquer um que quisesse potencializar sua atividade sexual, inclusive por jovens sem qualquer dificuldade. Schaap expõe como as propagandas voltadas para o público leigo evidenciam esta mudança de foco, do tratamento de um "transtorno" para a promoção da "qualidade de vida".

O antropólogo Rogério Azize, em sua dissertação de mestrado "Química da qualidade de vida: um olhar antropológico sobre o uso de medicamentos e saúde em classes médias e urbanas brasileiras" (leia na íntegra aqui), analisa justamente o uso das chamadas "lifestile drugs" ou "medicamentos do estilo de vida" (categoria que inclui drogas como o Viagra, o Xenical e o Prozac). Segundo Azize, atualmente, "percebe-se uma noção de saúde que já não mais ocupa o posto de contrário à idéia de doença; e uma noção de qualidade de vida que se tornou uma espécie de chave-mágica da sociedade contemporânea, uma palavra-chave que pode justificar mudanças no cotidiano, consumo, novos hábitos e mudanças marcantes no estilo de vida. Se uma ação qualquer vai trazer ao seu agente mais qualidade de vida, então esta ação é socialmente justificável; apesar da categoria apresentar um significado nebuloso, seu reconhecimento é imediato na cultura de classe média urbana e o seu uso é bastante freqüente" (fonte). 

Este cenário, descrito por ele, faz parte de um processo social mais amplo chamado por alguns autores de medicalização da vida (ou da sociedade), no qual questões não-médicas passam a ser tratadas como problemas médicos. Com isso, problemas comuns da vida passam a ser encarados como transtornos ou doenças e, consequentemente, medicados. No entanto, a medicalização envolve não somente o tratamento de supostos transtornos, mas também o aprimoramento das capacidades individuais. Por exemplo, é crescente a utilização por universitários e concurseiros de metilfenidato (mais conhecido por seu nome comercial: Ritalina), visando não o "tratamento" do TDAH, mas o aperfeiçoamento das capacidades de concentração e memória - muito embora não haja comprovações quanto a isto. De forma semelhante, é comum o uso de drogas como o Viagra por pessoas que não precisam, mas que se sentem seguras ao fazer uso. E isto acaba gerando uma espécie de dependência psicológica da droga, questão também explorada por Schaap. Bom, fica a dica deste ótimo e divertido documentário. Como aperitivo, compartilho abaixo os primeiros cinco minutos, com legendas em inglês.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Hetracil e a medicalização da homossexualidade


Durante uma aula, um colega mencionou a existência de uma medicação criada nos Estados Unidos com o objetivo específico de "tratar" a homossexualidade. Pesquisando sobre ele na internet, caí no site do produto, chamado Hetracil. Logo na página inicial do site, ilustrada com a imagem de uma família margarina passeando pela praia, descubro que o Hetracil "é a medicação anti-efeminante mais largamente prescrita nos Estados Unidos, ajudando 16 milhões de americanos que sofrem com o Transtorno Comportamental Efeminado e Homossexualidade Masculina" (tradução minha). Se alguém me falar que este site é falso, "pegadinha do malandro", eu acredito. Porque, ele é todo absurdo! Em primeiro lugar, logo de cara, uma nova categoria de medicamento é criada e, a reboque, um novo transtorno mental. Mas o site não para por aí. Na seção "Informação sobre a doença", lê-se o seguinte:

Mais de 80 milhões de americanos sofrem de algum tipo de homossexualidade, e uma em cada oito pessoas precisam de tratamento para a homossexualidade durante a sua vida. A homossexualidade não é uma falha de caráter, não é nem um "modo" nem uma fraqueza pessoal que você pode mudar à vontade. Muitos homens saudáveis ​​podem se identificar com alguns dos sintomas da homossexualidade, como experimentar fantasias sexuais com outros homens. Mas a homossexualidade é diagnosticada apenas quando essas atividades tomam pelo menos uma hora por dia, são muito estressantes, e interferem na vida diária. Nós encorajamos você a aprender mais detalhes sobre a homossexualidade com seu médico. Quanto mais você souber sobre a doença ("illness"), mais você pode manejá-la e se recuperar dela. (tradução minha)

Fala sério, tá com toda cara de sacanagem! Não pode ser verdade!!! Mas a idiotice ainda não terminou. Na seção "Pergunte ao seu médico" há uma espécie de check-list de perguntas para você fazer ao seu médico, como por exemplo: "Eu sou comportamentalmente afeminado? De que forma?", "Que tipo de afeminamento eu tenho?". Finalmente, na seção de perguntas e respostas, há várias pérolas. Reproduzo apenas uma:

Eu comecei o tratamento para a minha homossexualidade com HETRACIL. Quanto tempo deve demorar para HETRACIL para começar a funcionar? O primeiro objetivo do tratamento é aliviar os sintomas da homossexualidade que estão perturbando sua vida. O alívio dos sintomas geralmente demora algumas semanas, embora alguns sintomas podem melhorar durante a primeira semana de tratamento. Pode demorar 8 ou mais semanas para experimentar os benefícios do tratamento com HETRACIL. Certifique-se de discutir como está se sentindo com o seu médico durante o tratamento.Você deve saber que a duração recomendada de tratamento com um anti-afeminante é de 6 a 12 meses, porque um dos objetivos de longo prazo do tratamento é que a homossexualidade não lhe incomode novamente. (tradução minha)

Bom, pesquisei mais na internet sobre o tal Hetracil e descobri (neste link) que trata-se, realmente, de uma farsa, ou melhor, de uma "brincadeira séria" de um sujeito chamado Benjamin. Em uma entrevista (citada aqui), ele afirma que criou esta farsa com o objetivo de "estimular o debate sobre o cenário hipotético em que uma cura para a homossexualidade (ou, pelo menos, tendências femininas) se torna uma realidade. Quais seriam as conseqüências para a sociedade se a orientação sexual puder ser manipulada?", questiona ele. Supostamente, alguns cientistas já conseguiram reverter a orientação sexual... só que em moscas (veja aqui). Será que, algum dia isto se tornará possível com humanos? O debate sobre a busca do "gene gay" ou da "cura gay" é muito complexo, extrapolando os objetivos deste post, mas proponho algumas reflexões. 



Sobre o "gene gay", vamos supor que, um dia, ele seja encontrado (e tem um bocado de gente procurando). Isto seria bom ou ruim? Existem partidários de ambos os lados. Segundo alguns, seria bom, pois provaria que ser gay não é uma escolha, mas algo constitutivo, inato. Segundo outros, seria ruim, pois descobrir que a homossexualidade é genética abriria a porta para perspectivas de tratamento. Dilema semelhante ocorre ao nos deparamos com pesquisas sobre o "cérebro homossexual" (saiba mais aqui). Existem pesquisadores escaneando cérebros de homossexuais e comparando-os com cérebros de heterossexuais, buscando, com isso, avaliar se há diferenças. Muitas críticas podem ser feitas à pesquisas como estas. A mais básica é: como separar claramente homossexuais de heterossexuais? Como saber, com certeza, se o sujeito, entendido como homossexual, não é, na verdade, bissexual ou pansexual ou assexuado ou homossexual somente nos fins de semana? A sexualidade humana é muito mais complexa do que fazem supor as categorias homossexual e heterossexual. A famosa Escala de Kinsey já apontava para isso no início do século passado. Assim, como comparar o cérebro de homossexuais e heterossexuais sendo que estas categorias são tão questionáveis e a sexualidade humana tão dinâmica e fluida? 

Uma segunda crítica que pode ser feita a estudos como estes é: quando comparamos a dinâmica cerebral de dois "tipos humanos" (homossexuais e heterossexuais, depressivos e não-depressivos, flamenguistas e vascaínos, etc) podemos até encontrar, em média, alguma diferença entre eles. Mas isto significa o que? Muito pouco. As imagens cerebrais não dizem nada sozinhas, isto sem falar que não são a reprodução fiel da realidade. Elas precisam ser interpretadas. As imagens não dizem se determinado padrão de atividade cerebral é patológico ou não. Quem diz isso são as pessoas. Por isso, considero uma ingenuidade afirmar, como alguns afirmaram na audiência na Câmara para discutir a tal "cura gay", que a ciência ainda não conseguiu mostrar de forma conclusiva que a homossexualidade não é uma doença, portanto ela pode ser. A ciência não tem como provar que a homossexualidade é ou não uma doença ou transtorno mental. Definições como esta são sempre o resultado de acordos coletivos, atravessados por múltiplos interesses e perspectivas e, portanto, dificilmente consensuais. Até a década de 70 a homossexualidade era considerada um transtorno mental pela Associação Psiquiátrica Americana. No DSM-III foi excluída em função de grande pressão do nascente movimento gay americano. Em uma votação, os psiquiatras decidiram pela retirada. Os partidários da "cura gay" utilizaram-se deste fato para demostrar (veja aqui) o quanto a decisão de retirar a homossexualidade do DSM foi uma decisão política, não científica. Só que eles não percebem que é desta forma que os TODOS os diagnósticos, especialmente no campo da psiquiatria, são concebidos. Há muito mais política do que ciência neste processo. E mais: ciência e política andam juntas, são inseparáveis.

Para finalizar este post, gostaria de trazer a clássica definição de medicalização do sociólogo Peter Conrad. Segundo ele, "medicalização descreve um processo no qual problemas não-médicos são definidos e tratados como problemas médicos, usualmente em termos de doença ou transtorno". É importante não confundir este conceito com o de medicamentalização, que descreve o processo em que cada vez mais problemas da vida passam a ser tratados com medicamentos. Este segundo conceito é abarcado pelo primeiro, mas não se equivalem. Tendo isto em vista, a homossexualidade é considerada por Conrad um caso clássico de desmedicalização, em que uma questão anteriormente concebida como problema médico passa a ser encarada não mais como uma doença, mas como uma diferença. O que nos traz de volta ao fictício Hetracil. Sobre medicamentos como ele, talvez mais importante que nos perguntarmos se é possível concebê-lo, é questionarmos se isto é desejável. E este questionamento vale para todas as propostas de "tratamento" da homossexualidade, sejam elas medicamentosas, religiosas ou comportamentais. 

Adicionar legenda

segunda-feira, 2 de julho de 2012

A "Psicologia Cristã" e os reformadores cruzados


Faz algum tempo que não atualizo o blog de maneira sistemática com textos meus, mas notícias recentes tem me motivado a escrever alguns posts, inspirados também em algumas leituras que venho realizando para o mestrado. Semana passada mesmo, reli alguns capítulos do clássico livro "Outsiders - Estudos de sociologia do desvio" (Ed. Zahar, 2008), do grande sociólogo americano Howard Becker, e é com base nele que vou tecer algumas considerações agora. O livro é uma obra-prima, recomendo a todos que se interessam pela problemática do desvio.



Bom, as notícias que me motivaram a escrever este post foram duas, basicamente. A primeira (ver link) é que o Centro Universitário do Distrito Federal (UDF) teria iniciado o processo de criação de um curso de pós-graduação em Psicologia Cristã. O CFP se posicionou contra e prometeu recorrer às instâncias competentes para evitar que tal curso se inicie, mas, o próprio UDF, segundo o blog do Paulo Lopes (link) negou a notícia, afirmando que "nenhuma discussão a respeito do referido curso foi submetida a qualquer instância dentro da instituição" e concluindo que o curso não será oferecido. No site do UDF não encontrei nada a respeito. Talvez seja boato, mas não duvido de propostas como essa, uma hora, virarem realidade. E o mais triste é que possivelmente haveria público para tal curso de pós-graduação. Ou não?


A segunda notícia é relativa à audiência, realizada na última quinta-feira, dia 28 de Junho, na Câmara Federal para debater o Projeto de Decreto Legislativo nº234/11 (que vem sendo chamado de Projeto de Cura Gay) de autoria do deputado evangélico João Campos (PSDB-GO), que visa a revogação de dois dispositivos da Resolução 01/1999 do CFP, que proíbe o envolvimento do psicólogo com qualquer atividade que favoreça a patologização da homossexualidade - o que inclui tanto pronunciamentos públicos quanto propostas de tratamento. O CFP, obviamente, se manifestou contra tal projeto (leia a carta de repúdio aqui) e, alegando desequilíbrio na escolha dos debatedores (quatro favoráveis à proposta e somente um contra), não compareceu à sessão como forma de protesto. A sessão foi tumultuada, com muito bate-boca e ânimos exaltados. Veja o video abaixo com a compilação de alguns momentos. Eu fiquei assustado!



Em outros momentos neste blog, já manifestei minha posição com relação às crenças e atitudes da tal "psicóloga cristã" e, anteriormente, da "psicóloga missionária" (quem se lembra dela?). Que fique claro meu apoio ao CFP nesta questão. Em outras questões - como na luta pelas 30 horas - considero o engajamento do CFP equivocado, mas não neste caso. Esta pretensão de "curar gays" é tão moralista e antiquada que fico consternado como tem pessoas que defendem isso. E não simplesmente defendem, mas defendem entusiasticamente. O que mais me impressiona é como algumas pessoas e grupos se engajam em verdadeiras cruzadas que visam não a criação e consolidação de direitos, mas a retirada ou a não aquisição de direitos por certos grupos minoritários. E é por este caminho que gostaria de analisar as atuações de certas pessoas e grupos conservadores que, na linguagem de Becker, podem ser chamados de reformadores cruzados



Mas vamos antes de explicar o que Becker entende por reformadores cruzados, gostaria de trazer brevemente sua concepção de desvio. Para ele desvio não é algo natural ou inerente à pessoa, mas uma infração à uma regra criada e imposta por determinado grupo - mas não necessariamente por outros grupos. Para ele, nenhum comportamento é desviante em si. Em determinado contexto, determinada atitude pode ser considerada desviante, mas não em outro. Por exemplo, para muitas pessoas e grupos em nossa sociedade, ser gay é considerado algo desviante, mas esta concepção não vale dentro de uma boate gay ou em uma parada gay. Nestes espaço, ser gay é a norma. Para Becker, "desvio não é uma qualidade simples, presente e alguns tipos de comportamento e ausente em outros. É antes o produto de um processo que envolve reações de outras pessoas ao comportamento". Desta forma, a homossexualidade não pode ser considerada algo desviante em si, mas desviante apenas àqueles grupos que a consideram uma doença, um pecado ou uma abominação.



A definição de Becker pode até parecer meio boba, simples demais, mas tem profundas implicações. Concepções tradicionais do desvio, identificam-no, por exemplo, com aquilo que escapa da média estatística ou com aquilo que é patológico. Na primeira concepção, ter o cabelo ruivo ou ser canhoto, condições "anormais" estatísticamente, faria da pessoa um ser desviante (ou "outsider", na linguagem de Becker), o que é criticável, visto que somente em determinados contextos (mas não em todos) tais características são vistas como desviantes. Na segunda perspectiva, haveria uma identificação entre aquilo que é desviante e aquilo que é patológico, o que não é verdadeiro na maioria dos casos. Um assaltante, por exemplo, pode ser considerado um desviante, pois desvia de uma norma aceita em nossa sociedade, mas não é necessariamente portador de uma patologia. Este é um dos equívocos cometidos pela psicóloga cristã e seus coleguinhas evangélicos. Por considerarem a homossexualidade um comportamento que desvia do que consideram "normal" (que seria o relacionamento homem-mulher), podiam simplesmente dizer que a homossexualidade é um pecado. Segundo seu sistema de crenças, seria o mais correto à dizer. Mas não: afirmam que ser gay é uma doença. Ou seja recorrem ao vocabulário médico, sendo que a própria classe médica não defende isso mais - é óbvio que existem médicos que defendem, mas, desde a retirada da homossexualidade do DSM na década de 70 e do CID na década de 90, a homossexualidade não é mais considerada oficialmente doença pela medicina. Mas isto não importa para eles, o que importa é o que está escrito na Bíblia e isto não muda jamais, não é mesmo? (o curioso é como as interpretações da bíblia são variadas e mutantes) E é em função de crenças profundamente arraigadas, que se engajam no que Becker chama de cruzado moral.


Para o autor, o desvio surge após e como consequência de uma regra (que pode tomar o formato de uma lei ou não) ser criada. Com relação aos criadores de regras, Becker afirma que uma de suas variedades mais comuns, é o reformador cruzado. Becker o define da seguinte forma (e percebam a semelhança com as atitudes da tal psicóloga cristã e de seus coleguinhas):

"[O reformador cruzado] está interessado no conteúdo das regras. As existentes não o satisfazem porque há algum mal que o perturba profundamente. Ele julga que nada pode estar certo no mundo até que se façam regras para corrigi-lo. Opera com uma ética absoluta; o que vê é total e verdadeiramente mal sem nenhuma qualificação. Qualquer meio é válido para extirpá-lo. O cruzado é fervoroso e probo, muitas vezes hipócrita. É apropriado pensar em reformadores como cruzados porque eles acreditam tipicamente que sua cruzada é sagrada (...) O cruzado moral é um intrometido, interessado em impôr sua própria moral aos outros".

Com relação ao trecho "opera com ética absoluta", vale ressaltar que tal ética é pessoal e muitas vezes pode colidir com outras éticas, como a ética profissional, por exemplo. É o caso da psicóloga cristã, que está com um processo sendo movido contra ela pelo CRP-08. De uma forma geral, nesta definição Becker aponta que a crença na existência do Mal (leia-se: a homossexualidade, as drogas, o aborto) é tão forte que a luta para que ele deixe de existir se torna apaixonada. Com isso, a emoção parece prevalecer sobre a razão. O Mal precisa ser extirpado de qualquer jeito e urgentemente. Não há outra saída. Os cruzados morais sentem-se conduzidos diretamente por Deus para fazer o que fazem e dizer o que dizem. Por isso não sentem medo. Podem ser criticados por uma considerável parcela da sociedade, mas contam com o apoio de muitos - e o essencial: tem a tutela de Deus, o próprio. Desta forma, se você elogia suas atitudes, eles dizem: "Isto só confirma a validade e importância da minha missão"; se você os critica, eles se dizem perseguidos e concluem: "Isto só confirma a validade e importância da minha missão. Somos perseguidos tal qual Jesus o foi". Ou seja, não há saída, eles estão sempre certos!



Em outro trecho, Becker afirma que os reformadores cruzados, normalmente situados nas camadas superiores da hierarquia social, costumam ter fortes motivações humanitárias, buscando, de modo tipico, "ajudar os que estão abaixo deles a alcançar um melhor status". O problema, aponta ele, "é saber se os que estão abaixo deles gostam sempre dos meios propostos para sua salvação". Esta é uma questão central do polêmico PDL 234. Permitir aos psicólogos tratar a homossexualidade significa considerar comportamentos homossexuais se não patológicos pelo menos problemáticos. Mas os gays querem ser tratados? Acredito que a maioria não, mas alguns sim. Mas por que querem ser tratados? Provavelmente porque tem uma visão negativa da homossexualidade, considerando-se pecadores ou doentes ou, no mínimo, diferentes. Mas por que vêem-se desta forma? Não vejo outra resposta possível: porque grupos sociais majoritários concebem tais comportamentos como pecaminosos ou doentios e disseminam esta visão pela sociedade. Desta forma, na minha visão, ao abrir a possibilidade de tratar a homossexualidade, oficializa-se a visão de que a trata-se de um problema, o que faz com que o homossexual, sentindo-se problemático, resolva procurar ajuda. Em suma, o processo funciona mais ou menos como no cartum abaixo.



Com relaçãoao destino das cruzadas morais, Becker aponta que elas podem tanto obter o sucesso desejado quanto um fracasso retumbante. Uma cruzada bem-sucedida, segundo ele, normalmente implica no estabelecimento de uma regra ou um conjunto de regras, assim como de mecanismos apropriados de imposição. Por exemplo, a cruzada cristã poderá ser considerada bem sucedida se, por exemplo, conseguir aprovar o PDL 234 e evitar a aprovação da PLC 122, que criminaliza a homofobia. No entanto, Becker aponta para um fenômeno curioso: quando um individuo atinge seu objetivo - ou seja, encontra seu Santo Graal - algumas vezes ele perde sua ocupação. "A cruzada que absorveu tanto de seu tempo, energia e paixão está encerrada". Segundo ele, da mesma forma que a ocupação de um homem pode se tornar fonte de sua preocupação, sua preocupação também pode se tornar sua ocupação. Assim, o que fazer depois de finalizada uma missão? Muitas vezes, o sujeito se engaja em outra. Segundo Becker, este homem, "confuso, pode generalizar seu interesse e descobrir algo novo para encarar como alarme, um novo mal acerca do qual algo deve ser feito. Torna-se um descobridor profissional de erros a serem corrigidos, de situações que demandam novas regras". Alguns reformadores cruzados, mais perspicazes, se envolvem logo com várias causas. Se, por acaso, uma for fracassada, ainda restam outras. Além da cruzada anti-gay muitos se envolvem, por exemplo, em movimentos contra a legalização das drogas e do aborto ou a favor das comunidades terapêuticas.

No caso de uma cruzada malsucedida, que não alcançou seus objetivos e/ou não consegue mais adeptos, Becker aponta para dois caminhos possíveis. No primeiro, os reformadores cruzados simplesmente desistem de sua missão original, tentando preservar o que resta da organização construída. No segundo, o movimento malogrado pode aderir a outras missões cada vez menos populares. Segundo o autor, os moralizadores derrotados, tornam-se, eles próprios outsiders, "continuando a esposar e pregar uma doutrina que soa cada vez mais esquisita com o passar do tempo". Fraternalmente, é o que espero que aconteça com todos esses reformadores cruzados conservadores e homofóbicos. Mas, por enquanto, só desejo uma coisa a eles:

South Park e a "cura gay"



Georges Canguilhem, em seu clássico livro "O normal e o patológico", alertava para o duplo sentido da palavra "normal". Ao mesmo tempo que aponta para aquilo que é comum e habitual, indica o estado ideal. Ou seja, aponta tanto para aquilo que "é" quanto para aquilo que "deve ser". Por exemplo: falar em uma orientação sexual normal significa dizer que a heterossexualidade é normal porque é mais comum e/ou que é normal porque é assim que deve ser. Os militantes da "cura gay" tendem a se utilizar das duas concepções indiscriminadamente, especialmente da segunda. Afirmam que a homossexualidade é um pecado ou uma doença porque foge a uma espécie de "design divino", afinal deus criou o homem e a mulher para procriarem. Se não há procriação não há casamento e logo, não há família. Está lá na Bília, dizem. No entanto, os homossexuais existem. Mas como podem existir se vão contra os designos de deus? Seriam uma espécie de erro de deus? Mas ele não é onisciente e onipotente, como poderia cometer um erro tão "grave" como este?


Assisti outro dia uma episódio do South Park (meu seriado favorito!), intitulado "Cartman sucks", que dá uma ótima resposta para estas questões. Quem quiser assistir, legendado, clique aqui. Neste episódio, o sacana Eric resolve zoar o inocente Butters, vendando seus olhos e colocando o pênis em sua boca para tirar uma foto e mostrar para todo o colégio. Neste momento, o pai de Butters entra no quarto e vê a cena, ficando assustado. Eric sai e Butters, sem entender nada do que está acontecendo, é taxado de bi-curioso por seu pai, que recorre a um padre para lhe ajudar. O padre pergunta a Butters se ele se sente confuso e este afirma estar realmente muito confuso - mas por não saber o que está fazendo ali. Diante desta resposta, o padre lhe envia para um acampamento religioso, chamado New Grace, para curar sua bi-curiosidade. 


Chegando lá, seu pai o deixa com os responsáveis. Um deles lhe diz: "Seu filho só precisa aprender a se endireitar se quiser". Ou seja, a bi-curiosidade é entendida como uma escolha, passível de ser corrigida voluntariamente. Um dos responsáveis leva, então, Butters para o quarto onde ficará com seu monitor, Ryan. Sobre este é dito: "Ryan achou que nunca poderia mudar, mas agora está aprendendo que com o poder de Cristo e das preces, ele pode ter uma nova vida". Entrando no quarto, descobrem que o garoto acabara de se enforcar. Mas não só ele, durante todo o episódio, vários garotos se matam (como ocorreu, na vida real, com o matemático Alan Turing - saiba mais aqui). Arranjam então outro monitor para Butters, o Bladley, um garoto que declama versículos bíblicos obsessivamente durante todo o tempo, de uma forma um tanto quanto mecânica. 


Em uma palestra para os internos, o pastor Philips, um "ex-gay" super-afeminado, diz o seguinte: "Sim, acreditando ou não, eu tinha desejos impuros e, como muitos de vocês, achei que era assim mesmo, que não tinha escolha. Mas daí eu percebi que Deus não queria que eu fosse assim. Deus queria que eu fosse homem. Então eu apertei o cinto da minha roupinha e orei pra ser normal e adivinhem: deu certo!". Nesta frase fica explícito duas "técnicas" utilizadas no tratamento da bi-curiosidade: a "abstinência" e a oração. Na cena seguinte, outra estratégia se evidencia: o evitamento de estímulos visuais. Uma foto de propaganda de cuecas é encontrada no quarto do Bladley e, tanto ele quando Butters, são punidos. Durante a realização da tarefa punitiva, copiar a Bíblia por 4 dias, Bradley confessa à Butters que ainda se sente confuso e demonstra um certo interesse por ele, interesse este interrompido bruscamente por sentimentos de culpa. "Pensamentos ruins! Pensamentos ruins!", diz Bradley. O desespero toma conta dele: "Oh Deus! Não temos conserto. Não percebe que somos causas perdidas. Somos perversos e nada pode nos mudar! Não tem saída, Butters, temos que nos suicidar". 


Desesperado, Bradley corre para a ponte e ameaça pular. Um dos responsáveis pelo acampamento implora para que ele não faça isso, ao que ele afirma: "Afaste-se! Sou uma abominação de Deus. Não sou normal nem nunca serei". Butters intervém, retrucando que ele é normal sim. O responsável discorda, falando que ele é tão confuso quanto Bradley. Butters então, numa fala final absolutamente brilhante, afirma:

“Estou cansado de todos falarem que eu sou confuso. Eu não era confuso antes que outros começassem a dizer que eu era. Quer saber o que eu acho? Acho que talvez os confusos sejam vocês. Eu não vou mais ficar confuso só porque vocês dizem que eu deveria estar! Meu nome é Butters, tenho oito anos de idade, sou sangue O positivo e sou bi-curioso! E está tudo bem! Porque se eu sou bi-curioso, e sou de alguma forma feito por Deus, então eu acho que Deus deve ser um pouquinho bi-curioso também!”

O que será que os partidários da "cura gay" teriam a dizer sobre isto?