quarta-feira, 8 de agosto de 2012

GUEST POST: Sobre Psicologia, Ciência e Religião



Inaugurando a seção Guest Post, publico abaixo um texto do meu xará e parceiro de ótimas discussões no Twitter, o Felipe Hautequestt, que é Bacharel em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Escrito inicialmente como um comentário ao meu post anterior, o texto foi ampliado para ser publicado aqui. Eu gostei tanto do que ele escreveu, inclusive quando ele discorda dos meus argumentos, que pedi sua autorização para publicá-lo. Desejo que este seja o primeiro Guest Post e que este blog deixe de ser apenas um monológo e torne-se um espaço de disseminação de múltiplas vozes sobre as grandes questões da Psicologia. Portanto, se alguém concordar ou discordar do que eu ou o Felipe escrevemos e/ou quiser acrescentar algum ponto de vista sobre esta ou outra questão, é só escrever um texto e me enviar por email. Segue o texto do Felipe Hautequestt: 

No meu entendimento, a questão da cientificidade da Psicologia pode ser perfeitamente colocada entre parênteses quando se trata de afastar a Psicologia do domínio da fé e da doutrina religiosas. Não é necessário ir tão longe, pouco importa aqui se a Psicologia sucedeu ou não como ciência. E, aliás, essa questão só pode ser adequadamente respondida se entrarmos em acordo quanto ao que é uma ciência e quais são seus caracteres distintivos, para começar. O que importa é que a Psicologia se pretende uma ciência empírica, tendo nascido de um projeto de cientificidade do qual não pode abdicar (por mais que o sentido de ‘cientificidade’ esteja em aberto e não precise ser necessariamente aquele dado pelos positivistas do século XIX). Dois critérios certos podem ser extraídos dessa pretensão fundadora sem cair em discussões árduas de filosofia da ciência: (1) ela deve necessariamente fazer algum tipo de recurso à experiência, submeter-se, portanto ao seu crivo; e (2) ela deve apresentar hipóteses e teorias argumentadas, raciocinadas. Ou seja, ela não pode ser nem uma ciência puramente especulativa (metafísica), nem um corpo doutrinal que exija uma adesão pela fé, pela aceitação integral duma verdade revelada (religião), sem razões que a sustentem. 





Esse é o ponto central, no meu entendimento. As religiões não lidam com problemas de fato (isto é, de como as coisas são) – por exemplo, como funciona o mundo subatômico –, mas sim com problemas de valor (como as coisas devem ser) – por exemplo, como devo conduzir minha vida. Por isso, os enunciados religiosos se fecham de saída, e por definição, a ambas os critérios: oferecem narrativas que não são passíveis de nenhum tipo de controle pela experiência (como quer que o caracterizemos) e, além disso, são calçadas na fé, e não na argumentação racional. É importante dizer que isso não constitui nenhum demérito para as religiões, apenas define sua especificidade em relação a outros tipos de discurso. E porque seus traços essenciais são estes, é por essência que a religião está automaticamente excluída de qualquer discurso que se pretenda científico – independentemente dele ser efetivamente científico ou não. 




Esse é o critério que embasa (e com toda razão, a meu ver) a Resolução 016/95 citada no texto: aquelas práticas faziam referência aberta a proposições de caráter nitidamente religioso, místico e/ou esotérico. Poderiam dizer alguns: "Ah, mas funcionam! Essas práticas reúnem muitos indícios de que são eficazes, isso não basta?!". Ora, mas a medida da Psicologia como ciência aplicada nunca pode se limitar ao resultado puro e simples – trata-se de saber por que e como as técnicas funcionam, e isso requer uma teoria, um conjunto coerente de proposições que dê algum sustento àquela prática. Era para isso que Canguilhem nos alertava, em seu famoso artigo ‘Que é a Psicologia?’, ao escrever: “Quando se diz que a eficácia do psicólogo é discutível, não se pretende dizer que ela seja ilusória, mas simplesmente assinalar que essa eficácia está sem dúvida mal fundamentada enquanto não se provar que ela resulta realmente da aplicação de uma ciência.” Na medida em que certas práticas vetadas pelo CFP comecem a apresentar um esforço de embasamento teórico, e os profissionais se organizem para vir em sua defesa e argumentar em seu favor, então cabe ao Conselho admiti-las no campo de atuações possíveis do psicólogo. Pois, a partir de agora, tais práticas estão aptas a terem seus alicerces e fundamentos criticados por outros psicólogos e, como se sabe, a crítica cumpre um papel central e decisivo no desenvolvimento científico. (Popper dizia que uma teoria imune a críticas deveria, por isso mesmo, ser descartada de antemão como digna de consideração pelos cientistas.) 


Isso tudo, é claro, não dá tanto uma determinação positiva à Psicologia, não diz tanto o que ela é, mas busca apenas demarcar seus limites negativos, estipulando aquilo que ela não é e não pode ser a partir de certas condições básicas a serem atendidas. Acho eu que é nesse sentido específico que se pode falar de uma identidade ou especificidade da profissão a ser defendida: no sentido de uma identidade às avessas, por contraste com o que ela definitivamente não pode ser. Sendo assim, a demarcação ideal dos campos precisa ser mantida e resguardada, por mais que enfrentemos algumas dificuldades na hora de decidir o que se deve incluir ou rejeitar (se programação neuro-linguística e acupuntura contam ou não contam, por exemplo), e por mais que a inclusão ou rejeição de certa prática possa ser futuramente revogada em vista de novos desdobramentos do campo psi. O importante é perceber que esse problema de demarcação não é só uma tentativa dos órgãos fiscalizadores de preservar a credibilidade do psicólogo contra os excessos de charlatães, místicos etc., mas antes e sobretudo uma tentativa de reconhecer os limites de cada tipo de discurso.

"Cada um no seu quadrado"
Comentários
1 Comentários

Um comentário:

Vladimir Melo disse...

Muita gente vê a Psicanálise como ciência puramente especulativa. Eu mesmo a vejo assim em alguns momentos, mas isso não tira qualquer mérito dela, pois não vejo cientificidade no pós-modernismo e o considero um campo de atuação legítimo. Estou inteiramente de acordo com o critério 2. É isso. Um abraço.