terça-feira, 28 de maio de 2013

"Vivendo melhor através da química": sobre "Terapia de risco" e a Big Pharma

Confesso que esperava mais do filme "Terapia de risco" (Side effects, EUA, 2013), o que não significa dizer que se trata de um filme ruim. Pelo contrário: ele é instigante do começo ao fim, trata de questões fundamentais para o campo da saúde mental na atualidade, além de retratar de forma sagaz os bastidores da lucrativa e influente indústria farmacêutica. Quem assistiu ao filme - e recomendo que só leia este texto caso tenha assistido (ATENÇÃO: SPOILERS!!!) - sabe que ele tem dois momentos bem definidos, divididos em função de uma assustadora e inesperada ação da personagem Emily Taylor (interpretada pela atriz Rooney Mara, a Lisbeth Salander da série Millenium). Após este momento, o estilo do filme, o ritmo e mesmo o protagonista mudam. O que era inicialmente um drama torna-se um thriller e uma parte da complexidade do primeiro ato se perde em um final que, ainda que seja surpreendente, é, na minha opinião, demasiado simplista. Explicarei o porque adiante. Mas comecemos pelo princípio.

Dirigido pelo talentoso e versátil Steven Soderbergh (o mesmo dos ótimos Traffic, Erin Brockovich, Che e Sexo, mentiras e videotape), "Terapia de risco" conta a história da designer gráfica Emily, que aguarda a libertação de seu marido, preso há quatro anos. Assim que Martin (Channing Tatum) volta pra casa, Emily passa a apresentar um comportamento deprimido semelhante ao que apresentara logo que ele foi preso - o que a levou, à época, a realizar um tratamento com a psiquiatra Victoria Siebert (Catherine Zeta-Jones). Em certo momento, logo no início do filme, Emily tenta se suicidar batendo seu carro na parede de um estacionamento. Em função disso, ela é encaminhada para tratamento com o psiquiatra Jonathan Banks (interpretado pelo ótimo Jude Law) e é logo diagnosticada como tendo depressão. Este prescreve, então, após algumas tentativas mal sucedidas com outras medicações, o recém-lançado antidepressivo Ablixa. Para quem se interessar, recomendo uma visita ao site falso deste remédio, criado pelos produtores do filme nos moldes dos sites reais elaborados pelos laboratórios farmacêuticos. Até mesmo uma falsa propaganda foi criada. 


Neste momento, o filme começa a expor algumas estratégias reais da indústria farmacêutica para influenciar os médicos a prescreverem seus produtos. São mostrados os almoços pagos pelos representantes da Big Pharma (que motivaram, nos Estados Unidos, a campanha No free lunch - "Não existe almoço grátis"), a distribuição de viagens, brindes e amostras grátis (que geraram no Brasil a campanha "Alerta: Amostra nunca é grátis"), os eventos e artigos "científicos" patrocinados pela indústria, o recrutamento de psiquiatras como "consultores" (muito bem pagos, obviamente) em pesquisas cujo principal objetivo é, na verdade, habituar o paciente e o psiquiatra com determinada medicação (normalmente uma "nova" medicação, mas que costuma ser apenas "mais do mesmo", ou seja, praticamente a mesma fórmula de um medicamento antigo com outro nome, de forma a parecer algo "inovador"), etc. Além disso o filme aponta para o impacto das propagandas de medicações psicotrópicas diretamente  para o consumidor - o que é proibido na maior parte do mundo (inclusive no Brasil), com exceção somente dos Estados Unidos e da Nova Zelândia. Em uma cena ilustrativa, a psiquiatra Victoria comenta sobre Emily para Jonathan: "Talvez ela seja candidata a um desses remédios novos. Às vezes o recurso mais novo dá confiança. Eles veem os comerciais na televisão e acreditam".

Esta relação entre a medicina e indústria farmacêutica é mais próxima do que muitos imaginam. Segundo pesquisa realizada em 2010 pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP) com 600 médicos de diversas especialidades, 93% deles afirmaram já ter recebido produtos, benefícios ou pagamentos considerados de pequeno valor (até R$500,00) da indústria farmacêutica ou de equipamentos, 80% já receberam visitas de representantes da indústria (e isto ocorre desde a graduação), 34% já ganharam almoços ou jantares, 74% amostras grátis de medicamentos, isto para não falar dos materiais informativos (88%), revistas "científicas" patrocinadas pela indústria (61%), objetos de pequeno valor para o consultório (58%) e ingressos para eventos culturais ou de lazer (15%). E mais: 77% dos pesquisados disseram conhecer médicos que já receberam produtos, benefícios e pagamentos de maior valor (mais de R$500,00). No entanto, somente 37% deles admitiram ter recebido. É aquela velha história: "vendidos (ou racistas ou homofóbicos ou bairristas) são os outros, não eu!" De qualquer forma, esta proximidade da medicina com a indústria farmacêutica é avaliada pelos médicos predominantemente (62%) como algo positivo. Neste sentido, 73% acreditam que sem o patrocínio da indústria, a organização de congressos se inviabilizaria e 19% são favoráveis até mesmo a que a indústria opine sobre a programação de congressos e simpósios médicos. Mas felizmente existe uma minoria significativa que não vê com bons olhos tal aproximação. De acordo com a pesquisa, 32% acreditam que o relacionamento dos médicos com a indústria está totalmente fora de controle e 35% fazem críticas à indústria, principalmente por causa da relação comercial, dos interesses financeiros e influências na prescrição. Nos últimos anos algumas tentativas de disciplinar a relação dos médicos com a indústria tem sido implantadas pelo Conselho Federal de Medicina , mas o problema permanece. E é realmente um problema pois, por mais que alguns médicos afirmem não ser influenciados pela indústria, eles o são sem se darem conta - assim como nós somos influenciados pela publicidade de uma forma geral. Se pensarmos bem, a publicidade é para a indústria farmacêutica uma enorme fonte de gastos - maior até do que os gastos com pesquisa. Desta forma, se o marketing direto ou indireto não trouxesse nenhum retorno financeiro, será que eles continuariam investindo? Certamente não. Se continuam se aproximando dos médicos é porque a tática funciona. E como! A Big Pharma está cada vez mais big!

Relacionado à isto, é interessante perceber que no universo do filme - que talvez não seja assim tão diferente do nosso - medicar-se é algo comum, cotidiano, banal. Praticamente todos que aparecem na tela se utilizam de alguma medicação ou substância psicoativa, desde Emily até a mulher do psiquiatra. A cena em que esta recebe uma medicação do marido é bastante ilustrativa: logo antes de participar de uma entrevista de emprego, Jonathas lhe dá um tranquilizante e ela, então, questiona: "é errado eu estar fazendo isso?". A resposta do psiquiatra é esclarecedora: "Todo mundo toma. Advogados, músicos, pessoas que vão para entrevistas de emprego importantes. [A medicação] não a torna nada que você não é, apenas facilita que você seja quem você é". O próprio psiquiatra, em determinado momento, aparece tomando uma bebida energética, que o ajuda a suportar os extenuantes plantões - e é quando ele diz a frase que escolhi para o título deste texto: "Vivendo melhor através da química!". Neste sentido, eu não teria como discordar das idéias do antropólogo da ciência Joseph Dumit em seu último livro Drugs for life: How Pharmaceutical companies define our health (Drogas para a vida: como as companhias farmacêuticas definem nossa saúde). Segundo ele, atualmente, "as medicações se tornaram parte integrante da vida cotidiana na América. Elas ajudam aqueles que estão de dieta a terem um jantar de Natal [através de medicações que controlam as taxas de colesterol]; elas ajudam a suprir as escolas com crianças atentas; elas são parte de nossa identidade assim como de nossas vidas". 

Neste livro, Dumit estabelece uma interessante classificação dos "modos biomédicos de viver", ou seja, das formas com que as pessoas se relacionam com as medicações e com os riscos da vida. O primeiro tipo é o "paciente expert", que engloba pessoas sedentas por informações sobre a própria saúde. Os pacientes experts são, por assim dizer, experts em serem pacientes. Sabem todas as suas taxas de glicose e colesterol e tentam se manter sempre atualizados com relação à elas. E para atingirem a tão desejada saúde adotam uma abordagem um tanto hipocondríaca, que Dumit chama de "abordagem da poli-pílula": com o objetivo de serem saudáveis, tomam uma série de medicações. Assim, o lema dos "pacientes experts" é: "se você pode tomar remédios que te ajudam, então você deve tomá-los". O segundo tipo definido por Dumit são os "sujeitos assustados". Estas pessoas não tanto procuram a saúde quanto evitam doenças e riscos, mas nunca estão certos se de fato conseguiram o que pretendem. Tais sujeitos vivem permanentemente tensos e inseguros - e mesmo assustados - diante das incertezas e controvérsias da área da saúde. "Os médicos dizem que comer salmão faz bem para o coração, mas li no jornal que os salmões estão contaminados com dioxina, o que aumenta o risco de câncer. O que eu faço? Como ou não como?". É esse tipo de crise em que vive permanentemente os sujeitos medrosos. "Como chocolate porque faz bem para o coração ou não como porque aumenta o colesterol?" A alimentação, neste caso, é tratada como remédio, num processo chamado por Dumit de medicalização da comida. Segundo o autor, a oposição entre o que é prazeroso e o que é saudável é uma característica essencial dos sujeitos medrosos. Finalmente, o último tipo definido por Dumit são as pessoas que "vivem melhor através da química" (expressão exata à utilizada pelo psiquiatra do filme). Estas pessoas estão bem resolvidas com o fato de que a vida pode (e portanto deve) ser regulada quimicamente. É preciso tomar um remédio para dormir e outro para acordar? Tudo bem! É preciso tomar um remédio para acalmar e outro para agitar? Tudo bem! Posso tomar um remédio que diminui o colesterol de forma a poder comer aquela feijoada no sábado? Que ótimo! Não há nessas pessoas qualquer culpa ou receio com relação às medicações. Elas simplesmente as incorporaram em suas vidas e em suas identidades. É exatamente este universo de pessoas que é retratado pelo filme.

Mas voltando à história, Emily passa então a tomar o antidepressivo Ablixa. Inicialmente parece que o remédio faz efeito e ela se sente muito melhor consigo mesma e com seu casamento. Ao mesmo tempo, ela começa a sentir os tais efeitos colaterais indicados pelo título original do filme, com destaque para um: Emily torna-se sonâmbula. E é em um desses episódios de sonambulismo que Emily mata seu marido à facadas - em uma cena assustadora. A partir de então, o foco do filme muda para o psiquiatra de Emily em sua investigação do que de fato aconteceu. Inicialmente o filme traz, indiretamente, uma discussão que considero interessantíssima: quem cometeu o crime? Ou melhor: quem é o culpado? Se Emily estava dormindo, poder-se-ia argumentar que não havia propriamente um "eu consciente" que pegou uma faca e enfiou em Martin - em termos legais ela poderia, neste caso, ser considerada inimputável, afinal, como disse o psiquiatra no filme "para haver intenção é necessário consciência". Então quem matou? Em determinado momento a culpa  recai, de certa forma, no cérebro de Emily, numa justificativa do tipo "não fui eu, foi meu cérebro" - que vem sendo cada vez mais aceita pela justiça. A ideia passa a ser, então, que o cérebro de Emily, sob o efeito do antidepressivo, fez com que ela cometesse o crime. E como cérebros não podem ser condenados e presos (sem levarem juntos seus "donos" - ou será que somos os nossos cérebros?), a responsabilidade recai, finalmente (e para alivio do laboratório farmacêutico), no psiquiatra que receitou o Ablixa para Emily. Esta, por sua vez, passa a ser vista como uma vítima do tratamento médico empreendido por Jonathas. Com esta acusação, a vida do psiquiatra vira de cabeça para baixo e ele passa a tentar provar sua inocência buscando entender o que de fato houve naquela fatídica noite. 

O que acontece em seguida é tão cheio de revelações e reviravoltas que eu cheguei a me perder. Mas o essencial de tudo isso - e espero que se você chegou até aqui, tenha de fato assistido ao filme - é que, na verdade, Emily fingiu o tempo todo estar deprimida (até chegou a tomar o Ablixa, mas ele não fez efeito algum) e matou seu marido conscientemente. Os motivos ficaram um pouco confusos para mim, mas se relacionam com um caso que Emily teve com sua ex-psiquiatra Victoria e à um esquema de fraude do seguro de Martin que ambas se envolveram. Ou seja, toda a interessante discussão sobre o uso e os efeitos colaterais das medicações se perde num final inesperado porém simplista, que revela que a protagonista não era nada mais nada menos do que uma psicopata, que fez tudo o que fez racionalmente em função de interesses escusos. Como forma de puní-la, Jonathas a diagnostica falsa e intencionalmente como sendo portadora de Transtorno esquizoafetivo e ela termina o filme internada em uma instituição psiquiátrica. Uma reflexão que podemos tirar das revelações deste último ato de "Terapia de risco" é o quanto é fácil a um psiquiatra  (ou a qualquer outro profissional de saúde mental) ser enganado por algum paciente mal intencionado - como Jonathas o foi por Emily. Por lidarmos com questões altamente subjetivas, estamos sempre sujeitos ao erro, ao engano, à mentira - como comprovou experimento clássico do psicólogo David Rosenham na década de 70. Não temos (e será que um dia teremos ou queremos ter?) um exame de sangue que ateste que a pessoa está deprimida ou ansiosa ou angustiada. Como afirma a psiquiatra Victoria em determinada passagem do filme, "os cardiologistas podem ver um ataque cardíaco que está a caminho através de exames. Está no sangue. Mas quem pode ver a mentira, ou o passado, ou a tristeza?". Encontrar marcadores biológicos e desenvolver exames objetivos para problemas subjetivos é, atualmente, o sonho dourado da psiquiatria moderna. E não é por outro motivo que o Instituto de Saúde Mental dos EUA (NIMH) declarou independência do  recém-lançado DSM-5, elaborado pela Associação Psiquiátrica Americana (APA): exatamente por faltar a este a objetividade esperada para um manual de transtornos mentais do século XXI. Objetividade esta, diga-se de passagem, desejada com o mesmo ardor pela indústria farmacêutica. Num mundo em que os transtornos mentais forem entendidos, diagnosticados e tratados como doenças do cérebro, as pessoas consumirão mais e mais medicações. Talvez não estejamos muito longe disso. Ou, quem sabe, este já seja o nosso mundo...


Texto originalmente escrito para o portal (En)Cena

quinta-feira, 23 de maio de 2013

GUEST POST: A questão da droga, como ela é...


Quando li este texto da minha amiga Cláudia Ciribelli Rodrigues Silva imediatamente pensei: "tenho que publicá-lo", especialmente por vivermos um momento em que políticas de drogas retrógradas ameaçam tornar-se realidade - isto para não falar das que já se tornaram. Só para situar o leitor: Cláudia é graduada em Psicologia e mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - onde eu também faço meu mestrado. Sob orientação do consagrado psicanalista Joel Birman, ela defendeu, no início deste mês, sua dissertação: "Velhos métodos para novos exóticos: Justiça e Psiquiatria no controle do uso de droga". Neste Guest post, Cláudia faz uma reflexão - e mesmo um desabafo - sobre o sombrio caminho que as políticas sobre drogas tem tomado no Brasil.

No final do ano de 2010, quando decidi levar minha angústia (e também minha causa) para a academia e aprofundar o estudo sobre a política criminal e de saúde sobre droga, não sabia o que me aguardava. Naquele momento, meu questionamento girava em torno da sobreposição tratamento-punição que percebia na abordagem do usuário de droga, que se colocava na interseção desses dois campos discursivos: o discurso jurídico e o discurso médico. O que me intrigava era perceber como, mesmo após a insistência em afirmar o uso de droga como questão de saúde pública e não mais “caso de polícia”, na prática, era difícil perceber uma ruptura a partir dessa distinção, já que o viés repressivo era facilmente perceptível nas abordagens do campo da saúde, mascaradas pelo rótulo de tratamento e, portanto, bem mais sofisticadas e sutis. Certamente, tudo isso só se tornou questão para mim por meu envolvimento e aposta nos princípios da Reforma Psiquiátrica, lentes que me levam a enxergar a evolução e persistência do discurso manicomial na sociedade. E me parecia que os usuários de droga estavam se consolidando como a “bola da vez”. Eu mal sabia o que estava por vir...

De lá pra cá, a coisa piorou, e muito. Lá se foi o otimismo dos primeiros anos do século XXI. Após a aprovação da lei que reorganiza a assistência em saúde mental no Brasil (10.216/2001) e a III Conferência Nacional de Saúde Mental, as esferas da saúde – especialmente da saúde mental – se comprometeram com a assistência ao uso de álcool e outras drogas, na tentativa de recuperar os prejuízos causados por décadas de omissão do campo da saúde nessa área. Omissão esta que permitiu, inclusive, a proliferação das comunidades terapêuticas nas últimas décadas do século XX. Produziu-se, assim (finalmente), a “Política do Ministério da Saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas”, convergente com a política de saúde mental geral, a qual, por sua vez, já havia integrado as propostas reformistas. Prezava-se por investimento em estratégias de redução de danos, considerava-se a voluntariedade do tratamento, priorizava-se a abordagem territorial em detrimento das formas segregativas de tratamento, criticava-se o proibicionismo, vendo-o como uma barreira ao acesso ao cuidado. Estes são alguns dos muitos pontos importantes levantados por esta política que, infelizmente, parece ter sido esquecida antes mesmo que pudesse ser efetivamente implantada... 

A chamada “nova lei de tóxicos” de 2006 extinguiu a pena privativa de liberdade para usuários de droga. Ainda que não se tratasse da completa descriminalização e que os critérios de diferenciação usuário/traficante fosse pouco claro – levando ao maior encarceramento dos usuários de classes populares – era um passo (pequeno, é verdade) no sentido de um tratamento menos repressivo do consumo de substância. 



Porém, o que vivenciamos nos últimos anos é o rompimento radical com essa tendência, principalmente com a construção do discurso da “epidemia do crack”. O viés repressivo e punitivo retorna com toda força, tanto pelo apelo à manutenção e endurecimento da criminalização como pelo alto investimento em práticas segregativas e involuntárias/compulsórias de tratamento. Vamos na contramão da tendência internacional que, após os efeitos desastrosos do modelo de “guerra às drogas” exportado pelo governo norte-americano, vem levando cada vez mais países a procurarem outros modelos de abordagem. O usuário de droga é visto como aquele que trás o mal, o perigo, o risco. Dessa forma, em uma sociedade cuja relação com o risco é bastante perturbada, pode-se e deve-se fazer qualquer coisa para que ele não perturbe a ordem pública. Pouco importa se é constitucional, legal, moral, ético, ou mesmo eficiente – já que as estatísticas sobre a eficácia da internação são pouco animadoras e, mesmo assim, não a abandonam. Afinal, eficiente para que? Eficiente para quem?

Faz-se um grande esforço para dissociar o uso de droga do contexto social e cultural no qual se produz. Não seria a sociedade atual generalizadamente entorpecida? O consumo astronômico de psicofármacos não seria o outro lado da mesma moeda? 

Essas são somente algumas das muitas questões que podem ser levantadas (para não me estender além da conta), demonstrando a complexidade do problema. E, nesse momento, acima de tudo, é isso que precisamos buscar: que esta seja tratada como uma questão complexa. Sem soluções simplistas, reducionistas e covardes. É fato que ainda não se sabe bem o que fazer para enfrentar o problema, mas isso não nos autoriza a fazer qualquer coisa. Seja no campo acadêmico, médico, assistencial, militante, jurídico, etc. Se começarmos por reconhecer a complexidade da questão, certamente, seremos capazes de construir alternativas mais interessantes. 

Bem, a essa altura, pode ser que alguém vire para mim e diga: “cresça e apareça, menina. Quem é você? Eu tenho 30 anos de experiência nisso”. Eu sou Claudia, e eu luto para que daqui 30 anos eu possa ver uma política de drogas muito melhor que essa no meu país.

Que tal voltarmos à luta por uma sociedade sem manicômios?

terça-feira, 14 de maio de 2013

Instituto de Saúde Mental dos EUA "abandona" o DSM-5: o que isto significa?


Algumas semanas atrás foi disseminada a notícia de que o Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos (NIMH), principal financiador de pesquisas na área do país, teria "abandonado" o DSM-5 (o novo Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais), apenas duas semanas antes do seu lançamento. Na verdade, mais correto seria dizer que o instituto declarou independência do manual no que diz respeito ao financiamento de pesquisas. Segundo comunicado escrito por seu presidente Thomas Insel e publicado no site do Instituto, o NIMH irá "re-orientar sua pesquisa para longe de categorias do DSM. Daqui para frente iremos apoiar projetos de pesquisa que olhem além das categorias atuais - ou que subdividam as categorias atuais - para que se comece a desenvolver um sistema melhor". Inse volta sua crítica especialmente para a validade do DSM-5. Diz ele: "a força de cada uma das edições do DSM tem sido sua 'confiabilidade' - cada edição tem assegurado que os médicos se utilizem dos mesmos termos das mesmas maneiras. O ponto fraco é a falta de validade. Ao contrário de nossas definições de doença isquêmica do coração, linfoma ou AIDS, os diagnósticos do DSM são baseados em um consenso sobre grupos de sintomas clínicos, e não em qualquer medida objetiva de laboratório". Em função disto, Insel conclui: "Pacientes com transtornos mentais merecem algo melhor"


No caso, este "algo melhor" refere-se ao projeto Research Domain Criteria (RDoC), criado em 2009 pela NIMH com o objetivo de desenvolver "novas formas de classificar as psicopatologias com base nas dimensões do comportamento observável e medidas neurobiológicas". Como apontam neste link, "a intenção é traduzir o rápido progresso nas pesquisas neurobiológicas e comportamentais básicas para uma compreensão mais integradora da psicopatologia e o desenvolvimento de novos e/ou otimizados tratamentos combinados para distúrbios mentais". Em suma, pretendem ir além do DSM com seu check-list de sintomas, desenvolvendo parâmetros objetivos - leia-se: biológicos - para um diagnóstico mais preciso dos transtornos mentais - leia-se: cerebrais. Como afirmou Insel para o jornal New York Times sobre o DSM, "a biologia nunca leu este livro". Segundo ele, "enquanto a comunidade de pesquisa tomar o DSM como uma bíblia, nós nunca vamos progredir". Já o diretor do RDoC Bruce Cuthbert disse, nesta entrevista, que no futuro ele imagina que "em vez de dizer que um paciente tem depressão, ansiedade ou stress pós-traumático, diremos que o seu problema é, por exemplo, uma disfunção nos circuitos cerebrais que regulam as emoções. O mesmo para as doenças psicóticas, como esquizofrenia. Diremos, por exemplo, que o problema do paciente é um transtorno de disfunção das sinapses. E então falaremos de grupos de genes que regulam ou que afetam a estrutura das sinapses. Pode ser que a combinação desses genes, e não mais a soma dos sintomas, nos deem ideias diferentes sobre esquizofrenia ou transtorno bipolar". Neste futuro imaginado por ele, em que todos os transtornos mentais passam a ser entendidos e tratados como distúrbios cerebrais/genéticos, será que a Psicologia e a Psiquiatria ("ciências" da "mente") ainda teriam espaço? De qualquer forma, o RDoC é um projeto de longo prazo, praticamente uma missão à Marte - nas palavras do blog Mind Hacks. Por enquanto, como aponta Cuthbert, "o DSM ainda é a melhor forma de diagnosticar os transtornos psiquiátricos que conhecemos".

Neste sentido, algumas semanas depois da "potencialmente sísmica" notícia do "abandono" do DSM-5 pelo NIMH, um artigo escrito numa parceria entre o mesmo Thomas Inse do artigo anterior, e o presidente da Associação Psiquiátrica Americana (APA, responsável pelo DSM) foi publicado no site do instituto. Tal artigo - intitulado "DSM-5 e RDoc: interesses compartilhados" - é, provavelmente, uma tentativa de acalmar os ânimos daqueles que viram na posição da NIMH uma cisão com o DSM e, logicamente, com a APA. Segundo eles, o RDoC iria além do que o DSM-5 foi ou pode ir neste momento. Neste sentido, os autores deixam claro que o DSM-5, apesar de representar um avanço para a prática clínica, não é "suficiente para os pesquisadores". Assim, o o tal "abandono" do DSM-5 pelo NIMH não significa que RDoC e DSM são concorrentes, mas sim que são complementares pois, enquanto o DSM reflete o progresso científico observado desde a última edição do manual, publicado em 1994, o RDoC é um novo esforço global para redefinir a agenda de pesquisas e criar um novo paradigma no entendimento e tratamento dos transtornos mentais. Conclusão: "ao continuarem a trabalhar em conjunto, as duas organizações estão empenhadas em melhorar os resultados para as pessoas com algumas das doenças mais incapacitantes em toda a medicina". Toda esta história deixou bem claro para mim que o que está em jogo são duas visões biologizantes dos transtornos mentais e o que parecia inicialmente uma ruptura nada mais é do que uma pequena divergência. Ao que parece, pouca coisa mudou.