sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Desconstruindo Marte e Vênus: reflexões sobre neurossexismos e neurofeminismos

De acordo com um famoso livro de auto-ajuda "os homens são de Marte e as mulheres são de Vênus", o que é uma outra forma de dizer que a diferença entre  os dois sexos seria tão grande que é como se habitassem planetas distintos. Mas paremos para pensar um pouco: homens e mulheres são realmente tão diferentes assim? Grande parte das pessoas provavelmente diria que sim, afinal basta olhar para perceber que, em geral, homens e mulheres se vestem de formas diferentes e se comportam de maneiras distintas - o que sinaliza que também, e talvez, pensem e sintam diferentemente. Eu não discordaria totalmente desta resposta, mas faria mais algumas perguntas: por que homens e mulheres são diferentes? Será que já nasceram diferentes ou estas diferenças foram sendo construídas no decorrer do processo de desenvolvimento? Muitas pessoas, assim como muitos cientistas, tendem a acreditar na existência de diferenças inatas entre homens e mulheres - e por inato quero dizer tudo aquilo que a criança já possui ao nascer. Muitos cientistas acreditam que a nossa masculinidade e a nossa feminilidade são construídas, ou no mínimo pré-moldadas, antes mesmo de nascermos. Nossa genética, que herdamos de nossos pais, assim como a ação de certos hormônios durante a gestação, fariam com que nossos cérebros se diferenciassem - e é esta diferença que tornaria os homens essencialmente diferentes das mulheres e vice-versa. O papel da cultura e da educação, ainda que não seja negado completamente, é diminuido ao ser entendido como coadjuvante da biologia, esta sim a verdadeira protagonista do processo de diferenciação sexual.

Alguns autores vão além e buscam a explicação para as diferenças entre homens e mulheres em nosso passado evolutivo. A narrativa é quase sempre a mesma: em um passado distante, na "época das cavernas", os homens eram responsáveis pela caça e pela procura de alimentos enquanto as mulheres pela preparação de tais alimentos e pelo cuidado dos filhos. Esta narrativa, amplamente disseminada pelos livros de auto-ajuda e de divulgação científica, busca a explicação de nossos comportamentos atuais neste passado distante. A ideia é que homens e mulheres seriam diferentes atualmente  porque possuiriam histórias evolutivas diferentes, que teriam moldado seus genes de forma diferenciada, gerando com isso cérebros e comportamentos igualmente diferenciados. O grande problema de tal explicação é que ela permanece hipotética - como, aliás, quase todas as explicações do campo da psicologia evolutiva. A principal dificuldade é como saber com precisão como viviam os seres humanos há 50 mil anos, momento em que a escrita ainda não tinha sido inventada. Os arqueólogos bem que tentam, mas é muito difícil reconstruir fidedignamente este passado baseando-se apenas nos escassos vestígios deixados por nossos antepassados. Além disso, como apontam a neurocientista Catherine Vidal e a jornalista científica Dorothée Benoit-Browaeys no livro Cérebro, sexo e poder, tal explicação não passa "de uma representação mítica que consiste em projetar os nossos quadros mentais [do presente] na cultura dos homens do passado".

Mais recentemente, tal explicação tem se misturado a outras narrativas que envolvem hormônios, neurônios e sinapses. A ideia básica é que a estrutura e o funcionamento do nosso cérebro seriam determinados ou fortemente influenciados pela dominância de certos hormônios. Se durante e após o período de gestação formos inundados por hormônios "masculinos" nos masculinizaremos - e teremos "cérebros masculinos"; se formos inundados por hormônios "femininos", nos feminizaremos - e teremos "cérebros femininos". Esta teoria explicaria tanto as características "típicas" masculinas e femininas quanto a existência de "homens feminilizados" e "mulheres masculinizadas", assim como dos(as) transexuais, que teriam uma espécie de dominância hormonal inversa à de seu sexo biológico original. Os hormônios seriam, assim, os grandes responsáveis por termos cérebros e comportamentos "masculinos" e "femininos". Repare bem nas aspas pois, de fato - como já apontei anteriormente - cérebros e hormônios não podem ser masculinos ou femininos; somente as pessoas, ou seja, os indivíduos como um todo, podem ser. A testosterona, por exemplo, é chamada de hormônio masculino por ser mais elevada nos homens; no entanto, as mulheres também possuem tal hormônio - assim como os homens possuem estrogênio, um hormônio "feminino".  Da mesma forma, é equivocado falar em comportamento masculino ou feminino pois a forma como os homens e mulheres se comportam varia imensamente entre as culturas - e mesmo dentro da mesma cultura - assim como variou no decorrer da história. Os homens são mais agressivos e as mulheres mais dóceis? Depende. Alguns indivíduos se encaixam dentro deste estereótipo; outros não. Por mais que se queira generalizar, existem homens dóceis e mulheres agressivas e isto não significa que tais indivíduos não sejam homens e mulheres; significa apenas que eles não se encaixam nos estereótipos de gênero. 

No sensacional livro Homens não são de Marte, mulheres não são de vênus, a psicóloga Cordelia Fine chama de neurossexismo justamente as interpretações dos achados neurocientíficos que naturalizam os estereótipos de gênero socialmente construídos. Como afirma a autora, "algumas pessoas usam a neurociência de uma maneira que ela foi frequentemente usada no passado: para reforçar, com toda a autoridade da ciência, estereótipos e papéis antiquados". E é justamente contra este discurso cerebralista e neurossexista que a autora volta sua mira. Felizmente ela não está sozinha neste empreitada. Desde 2010 um grupo de pesquisadoras que se descrevem como neurofeministas - que inclui a própria Cordelia Fine - vem se articulando  em uma rede internacional denominada NeuroGenderings, cuja proposta, segundo a pesquisadora Marina Nucci, é “criticar o dualismo e a noção de dismorfismo sexual e discutir como fatos neurocientíficos sobre sexo e gênero são produzidos, chamando atenção para o contexto histórico, cultural e político e para as consequências éticas desses estudos”. Um dos principais focos desta rede é justamente combater o neurossexismo. Cabe salientar que as neurofeministas não pretendem efetivar tal "combate" simplesmente criticando as pesquisas neurocientíficas mas também, e especialmente, produzindo ciência - tanto que uma frase bastante repetida pelas pesquisadoras, e que dá título ao artigo de Nucci, é "Não chore, pesquise". Embora tais pesquisadoras sejam comumente taxadas de anti-neurociências a proposta delas não é simplesmente descartar a biologia, mas entender de que forma nosso sistema nervoso interage com o ambiente. O conceito de neuroplasticidade é extremamente importante nesse sentido, pois aponta para o entendimento de que nosso cérebro é moldado continuamente no/pelo mundo. Como afirma Fine em seu livro, "o nosso cérebro, como estamos começando a entender, é modificado pelo nosso comportamento, pelo nosso pensamento e pelo nosso mundo social. A nova perspectiva neuroconstrutivista do desenvolvimento do cérebro enfatiza o emaranhado simples e estimulante de uma contínua interação entre os genes, o cérebro e o ambiente". Para a autora, as diferenças entre os sexos/gêneros devem ser entendidas levando-se em conta esta permanente interação. E é por isso que, segundo este ponto de vista, seria equivocado dizer que homens são de Marte e mulheres são de Vênus. Não! Homens e mulheres habitam o mesmo mundo e são por ele formados - e suas diferenças não se devem simplesmente à ação dos genes e hormônios, mas sim a um complexo processo de interação entre biologia e cultura.

Observação: Um importante estudo publicado em 2015 no prestigioso periódico Proceedings of the National Academy of Sciences/PNAS apresentou fortes evidências de que embora existam algumas diferenças no funcionamento cerebral de homens e mulheres, tais diferenças não seriam suficientes para se falar em "cérebros masculinos" e "cérebros femininos" - isto porque haveriam também significativas diferenças entre os próprios homens e as próprias mulheres. Após realizarem exames de ressonância magnética no cérebro de mais de 1400 homens e mulheres e avaliarem tanto o volume de suas substâncias branca e cinzenta, quanto a quantidade de conexões neuronais e espessura do córtex cerebral, os pesquisadores concluíram que "embora existam diferenças de sexo/gênero no cérebro e no comportamento, humanos e cérebros humanos são compostos de 'mosaicos' únicos de características, algumas mais comuns em mulheres comparadas com homens, algumas mais comuns em homens em comparação com mulheres e algumas comuns em mulheres e homens. Nossos resultados demonstram que, independentemente da causa das diferenças observadas entre sexo/gênero no cérebro e no comportamento (natureza ou cultura), os cérebros humanos não podem ser categorizados em duas classes distintas: cérebro masculino/cérebro feminino" (veja aqui uma palestra TEDx da primeira autora deste artigo, a neurocientista e neurofeminista israelense Daphna Joel, falando sobre esta questão três anos antes deste estudo ser publicado - o video tem legendas em português, basta acioná-las). Comentando esta pesquisa, o psiquiatra Michael Bloomfield da University College London, afirmou o seguinte: "Se os resultados deste estudo forem replicados e relacionados ao pensamento e comportamento, este estudo não apoia a teoria de que os homens são de Marte e as mulheres de Vênus. Em vez disso, ele é uma evidência das ideias propostas pelo filósofo grego Platão e desenvolvidas pelo psiquiatra suíço Carl Jung, que nossas mentes seriam parte masculina e parte feminina".

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

"A chegada" e a difícil comunicação com o Outro

No sensacional filme de ficção científica A chegada, recém-lançado nos cinemas, doze enormes naves espaciais invadem a Terra e "estacionam" de forma aparentemente aleatória em cima de algumas cidades. No entanto, ao contrário do que ocorre em quase todos os filmes de invasão alienígena, os ETs não destroem a Terra nem matam os seres humanos. Suas naves ficam lá paradas e eles não dão o ar da graça, pelo menos inicialmente. Mas é claro que esta "chegada" mobiliza rapidamente governos e exércitos de todo o mundo, que erguem grandes estruturas de monitoramento nas proximidades das naves. Com tais estruturas, os governos pretendem não somente agir no caso de um eventual ataque mas também buscar as respostas para algumas perguntas inquietantes: o que eles querem? Por que vieram à Terra? E por que se mantém em silêncio? Em certo momento, os militares descobrem que durante alguns instantes do dia a nave se abre e os ETs aparecem atrás de uma parede transparente. E é logo após esta descoberta que a linguista Louise Banks é convidada a integrar a equipe composta por vários cientistas. Sua função específica é tentar se comunicar com os ETs e entender porque, afinal de contas, eles vieram à Terra. No entanto, como é de se imaginar, não se trata de uma comunicação simples - da mesma forma como não foi simples a comunicação entre colonizadores e colonizados e como não é simples a comunicação entre pessoas de diferentes países e entre os seres humanos em geral. Superar toda essa Torre de Babel é um desafio de dimensões interplanetárias.

No caso dos ETs, a comunicação é dificultada pelo fato de haver poucas referências em comum entre nós e eles. No caso de uma primeira comunicação entre pessoas que falam línguas distintas é possível buscar elementos no mundo que favoreçam um entendimento mútuo. Imagine, por exemplo, que você queira se comunicar com uma pessoa chinesa mas você não fala ou entende absolutamente nada de chinês. Como você faria? Aposto que inicialmente apontaria para si mesmo(a) e diria seu nome, esperando, assim, que a outra pessoa diga o dela. Em seguida você poderia apontar, por exemplo, para um livro e dizer "livro", esperando com isso que a pessoa nomeie o mesmo objeto em sua língua. A mesma metodologia poderia ser utilizada com diversos outros objetos ou elementos do mundo, o que permitiria um diálogo inicial - um diálogo um tanto simplório, certamente, mas ainda assim um diálogo. Mas como dialogar desta maneira com um ET? Você pode apontar para si  mesmo e dizer seu nome - como a Dra. Banks faz no filme -, mas será: 1) que eles conseguem enxergar e escutar? e 2) que eles possuem nomes? Acho bem possível imaginar uma sociedade, na Terra ou em outro planeta, na qual cada um de seus integrantes não possua um nome individual mas apenas um mesmo nome coletivo, por exemplo (como "os Negan" da série The Walking Dead). Nossa noção ocidental moderna - e terráquea - de individualidade não vale necessariamente para todo o universo, não é mesmo? Da mesma forma, parecem existir poucos elementos do mundo em comum entre humanos e ETs. A linguista poderia apontar para um livro e dizer ou escrever "livro", mas se eles não possuem objetos semelhantes àqueles que chamamos de livros nada disto faria sentido - e o mesmo vale para quase todos os objetos e coisas que pensarmos. Como então dialogar com tais criaturas?

Pois bem, no filme, a primeira tentativa de diálogo adotada pela Dra. Banks é justamente escrever o próprio nome em uma lousa e apontar para si mesma. Curiosamente, isto gera o efeito desejado e as bizarras criaturas, que se assemelham a polvos gigantes, esguicham jatos de tinta preta na parede transparente, formando símbolos arredondados que passam a ser vistos e entendidos como palavras. Mas se são palavras, o que significam? E de que forma tais símbolos se relacionam com os sons emitidos pelas criaturas? A intuição de Banks sobre os primeiros símbolos esguichados pelos Heptapods, como eles passam a ser chamados, é que se refeririam aos nomes dos dois seres que "dialogam" com a equipe - mas poderia ser também que significassem outra coisa. Aos poucos, isto é, a cada contato frente a frente e a cada tentativa de diálogo com os ETs - que parecem realmente dispostos a "conversar" -, a linguista e sua equipe, com a ajuda de alguns programas de computador, acabam por descobrir determinados padrões na linguagem escrita alienígena e isto faz com que o diálogo avance. Banks passa em certo momento a se utilizar da própria linguagem deles para dialogar. Não creio ela tenha se tornado fluente na língua alienígena, mas é possível constatar que a linguista aprendeu o suficiente para que um diálogo de verdade pudesse ocorrer. E com isso ela pôde finalmente compreender os motivos deles. Não entrarei aqui nesta questão e nem explorarei o surpreendente ato final. Gostaria apenas de discutir este complexo processo de comunicação entre a linguista e os ETs que, de certa forma, reproduz as dificuldades de comunicação entre os próprios seres humanos.

Como já comentei em outro post, empatia é a capacidade de nos imaginar no lugar do Outro. Não podemos, de fato, nos colocar no lugar deste Outro; o máximo que podemos fazer é utilizar nossa imaginação para induzir em nossa mente aquilo que acreditamos que outras pessoas (ou seres) sentem. E isto, embora seja algo positivo, aponta para um enorme abismo entre todos nós, pois de fato nunca saberemos exatamente como as outras pessoas se sentem - e nem, efetivamente, se sentem. Só o que fazemos e o que podemos fazer é pressupor, acreditar, imaginar. E nada mais. Isto significa que a angústia ou a alegria que eu sinto não necessariamente são iguais às que você sente, embora nós dois chamemos determinadas sensações mentais e corporais de angústia e alegria. Jamais saberemos de fato. Essa visão de que vivemos uma solidão essencial, caracterizada por este "abismo subjetivo", é chamada pelos filósofos de solipsismo (do latim solus ipse, que significa "um ser sozinho"). Os solipsistas acreditam que não é possível saber se outras pessoas possuem consciência - talvez elas sejam simplesmente robôs ou zumbis que simulam estados conscientes. Só o que podemos saber é que nós próprios somos conscientes e possuímos mentes. A ideia básica dos solipsistas, como sintetiza Eric Matthews no livro Mente: conceitos-chave em filosofia, é que "eu poderia ser o único ser consciente, o único ser com uma mente em todo o universo". Este pensamento, ainda que logicamente faça algum sentido, é efetivamente uma loucura - afinal, quem realmente acredita que nenhuma outra pessoa no mundo seja consciente? De toda forma, o solipsismo aponta para uma certa distância subjetiva entre as pessoas, que seria responsável por muitos dos problemas de comunicação que enfrentamos em nossas vidas. A ideia é que somos, de alguma forma, ETs uns para os outros: nossa forma peculiar de agir, pensar e sentir, ainda que seja construída coletivamente no mundo social, possui uma configuração individual única que dificulta sua apreensão pelas outras pessoas e consequentemente nosso processo de comunicação. E isto significa que embora compartilhemos o mesmo mundo físico, possuimos mundos subjetivos diferentes, o que faz com que passemos grande parte do tempo aprendendo e reaprendendo a nos comunicar uns com os outros. Algumas vezes a distância entre estes mundos diminui e a comunicação ocorre de forma plena; outras vezes - muitas vezes - a distância aumenta e a comunicação deixa de fluir. Como bem afirma Eric Matthews - e como comprova o maravilhoso filme A chegada -  "a comunicação humana, por mais difícil que seja, é ao menos possível de vez em quando".